Covid-19 e espiritualidade
por Ermes Ronchi (*)
Neste tempo de emergência, o que está a nascer de bom é a consciência de que a minha existência e a dos outros não dependem de mim; não sou eu o dono da vida. Basta um vírus para a colocar em risco. Um vírus que pode ajudar todos nós a purificar-nos da nossa indiferença diante deste mistério que a nossa sociedade tenta controlar e por vezes “dominar” através do progresso científico-tecnológico.
Esta emergência é um convite a servir a vida, antes de mais nada pondo fim à superficialidade, à indiferença, ao egoísmo que me faz pôr-me a mim próprio no centro de tudo; e por isso não esquecendo que tudo é dom. A saúde e o bom funcionamento, hoje, das células do meu corpo são um dom a redescobrir; nada é dado como adquirido ou devido.
Talvez a experiência do mal comum nos diga o que é o bem comum, hoje tão escarnecido e vituperado. Desta emergência pode extrair-se uma lição de solidariedade: a tua vida é também a minha vida, e eu, com as minhas forças, colaboro na construção do bem comum. Por isso evito abrir brechas na barragem de contenção comum com escolhas irresponsáveis, e obedeço às disposições restritivas, comportando-me com cautela e responsabilidade, porque ao proteger-me, protejo os mais fracos, os mais expostos: idosos, adultos frágeis, crianças doentes.
Quem sabe se esta precariedade, o sentido de um “inimigo” que nos ameaça, não são as cinzas que impomos sobre a nossa existência para nos encaminharmos para a luz fulgurante da Páscoa, prefigurada pelo Evangelho da transfiguração do passado domingo. Se acolhermos estas cinzas feitas de limites, renúncias, medos, cansaços, doença, sofrimento, morte, então poderemos entrar numa consciência maior, a de sermos envolvidos e responsáveis uns pelos outros, base do viver civil e do viver cristão. Em cada um de nós está o traço de cada pessoa; em cada vida entram, de variadas maneiras, todas as existências.
A Quaresma acende uma luz sobre a nossa precariedade: o Evangelho do primeiro domingo recordava que não só de pão vive o homem. Não podemos viver transformando tudo em bens econômicos; em momentos como estes, damo-nos conta de que o rei capitalista vai nu, e que também se vive de contemplação, de beleza, de relações, de sapiência. Vivemos também de vidas doadas para curar os outros, como são aquelas destes heróis modernos que são os médicos e os enfermeiros, que sufocam o medo para dedicar-se com abnegação a quem está frágil e doente.
Estes dias “sem” podem constituir uma oportunidade para nos dedicarmos a alguma coisa de que normalmente fugimos como se fosse um inimigo: a interioridade. Pode ter-se tempo para meditar, orar, caminhar, viver a pura alegria do dom e do agradecimento, viajar interiormente em companhia dos grandes de cada tempo.
Este é o momento de reentrar em si, voltar à interioridade, ao meu eu que se acende diante do mistério da vida e do mistério de Deus. São dias para nos sentirmos instados por algo que nos preme por dentro e é mais quente, mais intenso, mais luminoso do que tudo aquilo que nos preme de fora.
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(*) Ermes Maria Ronchi é sacerdote e teólogo italiano, professor de estética teológica e iconografia na Pontifícia Faculdade de Teologia “Marianum” em Roma.
Fonte: Pastoral da Cultura – Portugal
Eu não vi Deus!
O título acima é uma frase atribuída a Yuri Gagarin, cosmonauta da extinta URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Segundo consta, ele a proferiu depois de orbitar a Terra a bordo da nave Vostok 1 e observar o chamado, à época, espaço sideral. A frase é “atribuída” pelo fato de que pairam dúvidas se Gagarin de fato a tenha proferido. Historiadores dão conta de que a afirmação fora uma inserção do Governo nas falas do cosmonauta, uma espécie de propaganda estatal, atitude que se justifica por conta do contexto político de 1961, quando a URSS e os USA viviam o auge da chamada Guerra Fria. Portanto, em contraposição à fé em Deus – sempre muito presente nos Estados Unidos –, um cosmonauta soviético dizer que tinha ido ao espaço e não tinha visto Deus era oportunidade ímpar de marcar ponto positivo na disputa pela soberania mundial, pensava o Politburo, órgão máximo do Comitê do Partido Comunista.
O fato é que, ironicamente, a frase repousa e se fundamenta em alicerces bíblicos. Ou seja, nada de errado com a fala atribuída a Yuri Gagarin, pois de acordo com João 1.18, “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”. Ao longo de toda a história bíblica vemos homens e mulheres relacionando-se com Deus; no entanto, nenhuma dessas personagens de fato encarou Deus “face a face”, ninguém o viu, literalmente. É o caso de Moisés, que no alto do Monte Sinai pediu a Deus para ver sua face e ouviu como resposta: “Não me poderás ver a face, porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá”(Êxodo 33.20).
Ao longo de 26 anos de ministério pastoral tenho presenciado muitas pessoas numa busca sincera, porém pouco sábia, de tentar ver a Deus: “Onde ele está? Onde o vejo?” Como João nos informa, “ninguém jamais viu a Deus” e não seremos eu e você os vitoriosos a conseguir quebrar essa lei divina. Em nenhum momento o céu se abrirá e de lá descerá Deus para que eu e você o encaremos “olhos nos olhos”. Contudo, de acordo com João, este mesmo Deus que ninguém jamais pode ver foi pelo Filho revelado. A questão, portanto, toma outros rumos. Se ele nos foi revelado pelo Filho, a pergunta não é “onde” mas “como” o vejo?
“Podemos ignorar, mas não podemos fugir da presença de Deus.
O mundo está repleto dele. Ele anda, incógnito, por toda parte.
E o que é incógnito nem sempre é fácil de penetrar.
O verdadeiro trabalho consiste em lembrar de prestar atenção.”
Armand Nicholi
Se prestarmos bastante atenção poderemos “ver” Deus; afinal, segundo Nicholi, “o mundo está repleto dele”. Podemos vê-lo na beleza e na grandeza do céu que paira sobre nós. Podemos vê-lo no milagre que é a profusão das espécies de animais. Podemos, ainda, enxergar Deus nas cores e nos perfumes das plantas, especialmente nas flores. Mas, para vermos e percebermos de fato a presença de Deus, não há nada que se compare à vida humana e seus relacionamentos. Ele pode ser percebido na vida do irmão ou da irmã que se assenta ao seu lado nos cultos e que teve a vida transformada desde que se achegou ao Senhor. Se prestar um pouco mais de atenção aos irmãos ao seu lado, poderá descobrir histórias de como Deus se manifestou, trazendo-lhes a paz em meio às tempestades da existência humana. Você ficará surpreso em descobrir como Deus age de maneiras diferentes na vida de cada um de nós. Este é um dos maiores milagres que os nossos olhos podem testemunhar: pessoas que, depois de se relacionarem com Deus, encontram a razão e o sentido para suas vidas. Esta realidade é uma espécie de promessa bíblica: “E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2 Coríntios 5.17).
A presença de Deus também pode ser vista e percebida em sua própria vida. Se prestar atenção, perceberá que, no momento em que você mais precisava, pessoas foram usadas por Deus para ajudar-lhe com gestos ou palavras. Com certeza, não foram poucas as vezes em que, em meio a uma situação bem difícil e quando menos você esperava, pessoas se dispuseram a abençoá-lo(a), oferecendo uma palavra de conforto e atitudes amorosas. Você pode ver Deus, basta prestar atenção, pois “o mundo está repleto dele!”
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Rev. Roberto Mauro de Souza Castro
Pastor Auxiliar da Primeira IPI de São Paulo
Aprendendo com as aves
“Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves?” (Mateus 6.26)
Deus é o doador de todas as dádivas, de tudo o que temos e de tudo o que somos. Quando Deus terminou a obra da criação, viu que tudo era muito bom. A Terra era boa, o ar era puro e a água era fresca, toda comida que a terra produzia era saudável. Deus deu-nos a Terra para tirarmos o sustento, o necessário para viver de forma digna, para termos bem-estar e fartura. Deus também nos deu a tarefa de cuidar de sua criação. No entanto, o ser humano desviou-se do propósito original de Deus e hoje vive correndo atrás de coisas sem valor, que causam preocupação, ansiedade e sofrimento.
Jesus prega contra a preocupação e a ansiedade devido ao cuidado de Deus para conosco. Nosso Pai celestial, que está sempre atento às nossas necessidades diárias, dá-nos dia após dia o que precisamos, respondendo ao pedido pelo pão nosso de cada dia. Pão nosso de cada dia, segundo o que Martinho Lutero escreveu no Catecismo Menor (1529), é “tudo o que se refere ao sustento e às necessidades da vida, como, por exemplo: comida, bebida, roupa, calçado, casa, lar, meio de vida, dinheiro e bens, marido e esposa íntegros, filhos íntegros, empregados íntegros e fiéis, bom governo, bom tempo, paz, saúde, disciplina, honra, amigos leais, bons vizinhos e coisas semelhantes”. Para ilustrar esse cuidado de Deus, Jesus usa como exemplos os passarinhos e as flores do campo, que são belos e frágeis e recebem toda a atenção do Criador.
Percebemos tudo o que Deus nos dá? Algumas vezes é preciso aprender a ver com novos olhos. Vou citar um trecho de uma conversa de Sherlock Holmes, o famoso detetive que desvendava crimes misteriosos, personagem criado por Arthur Conan Doyle. Holmes tinha um célebre parceiro, Dr. John Watson. Veja este diálogo entre o detetive e o seu parceiro e avalie com qual deles você mais se parece:
Holmes: Watson, você vê, mas não observa. A diferença é clara. Por exemplo, você tem visto frequentemente os degraus que conduzem ao corredor desta sala.
Watson: Sim, frequentemente
Holmes: Quantas vezes?
Watson: Bem, umas cem vezes, eu acho.
Holmes: Então quantos degraus são?
Watson: Quantos? Eu não sei!
Holmes: Aí está! Você não observou, e, no entanto, viu. É exatamente neste ponto que desejo chegar. Pois bem, sei que são dezessete degraus, porque não somente vi, mas observei.
Holmes trabalha esse problema de modo semelhante ao que Jesus fez em Mateus 6.25- 34. Existe uma enorme diferença entre ver e observar. Quando elevamos nossos olhos aos céus ou contemplamos a natureza, não é muito difícil encontrar pássaros e flores ao alcance da nossa visão. Estamos tão acostumados com sua presença que lhes damos pouca atenção. Nosso Senhor nos convida não apenas a ver, mas a observar com atenção as aves e os lírios.
Se observarmos, vamos aprender com as aves, elas nos ensinam a ser menos ansiosos e mais confiantes. Menos ansiosos e mais livres para voar. Menos preocupados e mais atentos aos cuidados do Pai amoroso, misericordioso e bondoso. Atualmente, as pessoas sofrem antecipadamente por coisas que muitas vezes nem se tornam realidade. O amanhã ainda não nos pertence. O dia de amanhã trará as suas próprias preocupações. Para cada dia bastam as suas próprias dificuldades (Mt 34).
Procure observar as numerosas evidências ao seu redor do cuidado abundante de Deus para com você. A cada dia somos convidados a fortalecer a nossa relação com Deus por meio de súplicas, orações, intercessões e, principalmente, por ações de graças por seu imenso amor revelado em Jesus Cristo, nosso único Senhor e Salvador.
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Revª Denise do Nascimento Coutinho
Pastora Auxiliar da Primeira IPI de São Paulo
A Esperança Cristã e o Ano Novo
As celebrações do Natal passaram, mas o Natal não acabou. Não acabou porque, na perspectiva cristã, Natal significa o nascimento e a presença de Jesus entre nós e em nós. Jesus nasceu, esteve e está conosco e com a sua Igreja no mundo todo, pois sua promessa é eterna: “Eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século” (Mateus 28.20). No entanto, é natural que, após as celebrações do Natal, comecemos a pensar num novo ano. Para muitas pessoas, este momento cronológico é oportuno para estabelecer alvos na vida e firmar compromissos consigo mesmo e com os outros, o que, na prática, é uma espécie de renovação da esperança.
Para nós, cristãos, o início de um novo ano é mais do que troca do calendário, é ocasião oportuna para renovar nossa esperança em Jesus Cristo, fortalecer nossa fé e nos motivar para a tomada de decisões importantes, considerando sempre a presença e o agir de Deus em nós. A renovação da esperança e o fortalecimento da fé em Deus também nos incentivam a adotar um novo modo de viver e de agir, nos encorajam diante de desafios e sonhos, e a colocarmos tudo diante de Deus.
Como sabemos bem, ter esperança é fundamental em todas as áreas do nosso viver e em qualquer condição em que nos encontramos. No entanto, duas considerações são importantes para o exercício da esperança enquanto cristãos. A primeira é: a nossa esperança deve estar fundamentada em Deus. A esperança é um tema presente em toda a Bíblia. No Antigo Testamento, o povo de Israel vive da esperança proveniente das promessas feitas por Deus. No Novo Testamento, Jesus é o cumprimento da esperança messiânica do povo de Israel e, ao mesmo tempo, é aquele que possibilita nova esperança em Deus, em relação à vida e aos dramas que temos neste mundo. Na Bíblia, Deus é o autor e o doador da esperança, ou seja, toda esperança que temos nesta vida deve fundamentar-se nele.
Como consequência da primeira, a segunda consideração é: a nossa esperança em Deus é a esperança da morte para a vida, das trevas para a luz, da confusão para a paz, do pecado para a salvação, da solidão para a comunhão, da frieza para o amor, do vazio para a vida plena. É desta maneira que a Bíblia nos ensina sobre o conteúdo da esperança em Cristo. Esta é a esperança que devemos ter e assim descansar em Deus.
Portanto, esperança em Deus e em Cristo não é a mesma pautada em nós mesmos, em nossas capacidades, sentimentos ou vontades. A esperança própria do ser humano está baseada, muitas vezes, no egoísmo, nas coisas materiais, no sucesso pessoal e até mesmo na vingança e no beneficiar-se do outro por interesses pessoais. É comum lidarmos com a esperança como um desejo de que algo de bom nos aconteça e nos favoreça. É comum fundamentarmos nossa esperança em raciocínios, cálculos e previsões contabilizadas. Mas não é esta a esperança que aprendemos na Bíblia.
Podemos considerar nossa individualidade, nossos desejos e expectativas, porém nunca perder de vista a soberania, a graça e a vontade de Deus. Assim, mesmo que Deus não faça aquilo que tanto desejamos e esperamos, sabemos e cremos que Ele faz o melhor para nós e para a nossa realização como pessoas, enquanto seus filhos ou filhas, mesmo que não entendamos nem concordemos com seu querer. Nisto está fundamentada a esperança cristã.
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Rev. Reginaldo von Zuben
Pastor Auxiliar da Primeira IPI de São Paulo